I
NASCI
a melhor e a pior coisa
que poderia ter me acontecido
a lógica secreta das palavras
tão óbvia e tão banal
vital
você me vê como eu me vejo?
e se eu disser que não
que diferença vai fazer?
eu não entendo quase nada sobre olhos
mas olho muito
eu vejo o peso do mundo
nas suas costas
eu vejo uma criança assustada
em busca de colo
eu vejo você me olhando
e me perguntando o que eu vejo
como se isso fosse te salvar
caso eu dissesse que...
como se isso fosse te condenar
caso eu dissesse que...
mas você já está
condenada
presa
entre um olhar acusador e outro
você olha e busca
qualquer resquício de amor
pra continuar existindo
dentro desse olhar
que mais aprisiona do que ama
II
teus olhos em mim
a olhar
devorar
pra que deus devo orar
se o que tá no altar
diz que é pra perdoar
eles não sabem o que fazem
teus olhos em mim
a olhar
devorar
o que não posso calar
comecei a cantar
a culpa que não era minha
a história que não escrevi
não posso mais
encarnar um papel que não me cabe
e que me rouba o corpo
eu quero mais
é comer as maçãs
sem me preocupar em ser sã
em ser salva
em ser sua
eu quero mais
eu quero tudo
e um pouco mais
eu quero tudo
e o corpo, mais
III
UM CORPO, SUPORTE!
que já eu não suporto tanta coisa
e ainda assim carrego comigo
o peso morto
de olhares cravados
nas minhas costas
na minha bunda
nos meus peitos
na minha roupa
no meu jeito
ou em outra porcaria qualquer
(suportes imaginários, onde os olhos geralmente pousam e gozam, por acharem que sabem o que veem)
é um olhar grudento
morno
meio burro
porco
e consumidor
consumidores ávidos
corpos quadrados
quebrados em múltiplas telas
para melhor atender
às suas necessidades
um corpo meio robótico
que quase já não sente dor
mas sente muito
Sente-se! O doutor já vai chegar!
você vai ficar perfeita
vai parecer que nasceu assim
Doutor,
constrói pra mim um corpo belo e forte
pra que eu possa suportar o insuportável o olhar dos outros?
É claro, minha querida,
mas antes
precisamos esclarecer uma coisa:
o que é que você vê quando te olham?
sempre que passávamos em frente aquela loja
de roupas caras
de gente metida a besta
você olhava para a vitrine e dizia:
não gostei de nenhuma
são todas feias
você falava como se constatasse algo
que já sabia
muito antes mesmo de olhar
mas invariavelmente
você olhava
e invariavelmente
achava todas feias
penso:
e se agora for eu a vitrine
o suporte
para aquilo que teus olhos
tanto desgostavam
mas ainda assim
precisavam ver
IV
NUNCA FIZ AS PAZES COM UM PEDAÇO INTEIRO DE MIM
o pedaço que não se encaixa
o pedaço que eu quero extirpar
o pedaço expatriado de mim
o pedaço estrangeiro
o pedaço que não consigo controlar
o pedaço para sempre perdido
o pedido que não foi ouvido
o pedaço que eu queria que fosse de aço
mas é de carne e sangra
e eu não me calo
se falo
é por causa de tão
calejado pedaço
o pedaço, por excelência
o mais barulhento
o pedaço mais despedaçado
e mais inteiro também
e mais bonito
e mais brilhante
o pedaço cortante do espelho estilhaçado
o pedaço que mais me despedaça
o pedaço
o único pedaço
que conseguiria
me fazer de novo
inteira
se não fosse eu também
apenas um pedaço
V
CONSUMAÇÃO
Se olhasse menos para as telas
certeza
escreveria mais
se procurasse menos
pelo olhar dos outros
saberia mais sobre o que vejo
mas eu tapo os olhos
e cruzo os braços
que tal deitar na cama
e chorar um pouco
enquanto o mundo corre?
eu só gritei
porque não conseguia mais falar
eu não dou conta
de resolver os contratempos
que aparecem
e me digo toda vez
não perca tempo com isso
o tempo já está perdido há muito tempo
me espera que eu tô voltando
eu tenho vontade de dizer pra mim
me espera que eu tô chegando
eu tenho vontade de dizer pra mim
me espera que eu tô desesperada
eu tenho vontade de dizer pra mim
não me espera não
se não você vai perder a hora
vai, vai agora!
manda notícias
eu vou sentir minha falta
eu vou sentir o mundo muito pesado
e eu vou assoprar o mundo de cima do nariz
como se ele fosse uma pluma
eu vou te pedir que feche os olhos
e me diga o que vê
e eu também vou te pedir que não veja nada
que por favor não me bote um nome
e esqueça minha cara gravura
porque isso tudo
minha cara
me consome
e me consuma
Edimara Arcanjo é psicóloga, escritora e compositora. Autora do livro "Na minha barriga mora um monstro", publicado de forma independente, disponível na Amazon. Além disso, é atriz em formação pela Escola de Teatro 4portas na Mesa e integrante dos projetos Cantamina e Coral Vozes.