
I
Não tentar domar bicho selvagem
Primeiro
Circule lentamente a solidão
Provoque-a
E depois corra, de preferência sem sapatos,
Mesmo sabendo que ela
A solidão
é muito mais rápida
do que você
Então mostre
à solidão
os dentes que rangem à noite
Mostre a língua
Áspera
Rosada
Selvagem
E um pouco seca
Permita-se ser capturada
Pela solidão
E quando atravessada e presa
quando perceber: sem saída
Não há, não há como fugir (de si)
Vença pela entrega
Mergulhe
Mesmo com medo
Não há não há como fugir
Por isso,
Seja riso
Aberto,
alto,
frouxo,
leve,
E tudo bem se o riso for também um pouco triste
II
A musa
(um poema para ler em voz de combate)
Homens produzem arte ao longo da história (e inclusive a história)
poesias, músicas, pinturas, “mais uma sobre o amor”.
A mulher-objeto do amor (construído e colocado como natureza)
passivamente deve esperar seu par, um homem
e é inspiração para ele produzir sua arte
genial
A mulher-objeto é escolhida por um homem
para viver uma linda história de amor:
trabalho de cuidado não remunerado
violência doméstica
solidão
Eu não quero ser a musa de ninguém.
Recuso pedestais,
onde nos colocam nuas e vendadas
Construo a narrativa sobre mim mesma:
Mulher-sujeita
quebrada
e livre (só quando todas formos)
Eu não sou só poesia (e sou), sou a poeta.
III
Às ausentes de referências
Passei a vida contendo rio com as mãos
Tarefa impossível
e malfeita
IV
O bicho
Um bicho enorme atravessa a rua no centro da cidade
tão cotidiano quanto o foto-na-hora-foto-vendo-ouro-compro-cabelo
um pouco maior do que o pirulito da praça sete,
faz uma sombra estranha no encontro das avenidas
e caminha lentamente ao lado daquela placa que diz
proibido virar à direita, proibido virar à direita
se o bicho não vira a direita, para onde ele vai? para onde é possível ir?
será que os carros param, será que o mundo se suspende, será que as pessoas
[interrompem a
corrida e descem do ônibus pra ver?
será que ao acordar de repente com um susto assim as pessoas
param pra ver o que nunca foi visto
ver o que nunca foi visto
e para onde ele vai?
V
O propósito do teatro
Espantar fantasmas e vencer a morte,
ou morrer várias vezes (todos os dias e duas vezes aos sábados e domingos)
resistir a este governo
aqui e agora
de cara voltada para o público
transformar a poesia
em voz
e gestos
e com isso
colocar o corpo no centro,
provocar fissuras com
o conhecimento instalado no corpo
questionar a gravidade, as normas, os usos do espaço,
tecer rupturas, afetos, prazeres
olhar nos olhos e
desafiar o mundo
a ser outro
correr em direção a…
segurando algo nas mãos
talvez
outras mãos
reunir desconhecidos para
prestar atenção na vida
compartilhar a experiência
de ver a sopa engrossar,
os corpos se embolarem nus,
o enigma,
ação, pulsão, dança,
grito.
silêncio.
não lembramos os rostos de quem senta ao lado,
cara voltada para o palco
mas somos nós-outras, carne, coletivo,
respirando o mesmo ar,
compartilhando o assombro diante do mistério
e pelo teatro,
convidadas a
pensar o impossível
VI
Sozinha
I - Habitar a casa
em silêncio
saboreando o tempo
que se abre: desdobra
em meandros. angústias
Mas também - prazeres
tão banais quanto
deitar na cama em posição diagonal
sem saber qual é o dia do mês ou a hora da madrugada
em que chega o poema
II- Massagear os dedos
com a caneta que range
ao encontrar a folha
Ruído solene: companhia
III- Usar a madrugada para
pisar o texto com fôlego
(como as uvas nos barris);
deixar o tempo agir.
Ver as palavras ganharem
pequenas rugas,
rusgas,
rasgos
Isabella Bettoni nasceu e vive em Belo Horizonte, Minas Gerais, onde atua como advogada feminista, pesquisadora e escritora. Seu primeiro livro, Brincando de fazer poesia, foi lançado em 2008 pela Editora Uni Duni com poesias para crianças em fase de alfabetização. Participa de cinco antologias, com destaque para Antes que eu me esqueça: 50 autoras lésbicas e bissexuais hoje, da Quintal Edições (2021) e Coleção Desaguamentos Vol. I - Poesia de autoria feminina, da Editora Escaleras (2021). Além disso, integra a equipe do Portal Fazia Poesia, venceu a I Batalha do Festival Poesias que Inundam e tem textos publicados em portais e revistas como Ruído Manifesto, Tamarina, Mormaço, Declama Mulher, Revista La Loba e Revista Minha Voz.