I
Eu me pergunto se você sabe que dentro do peito de uma mulher:
passado, presente e futuro não se resolvem
um tempo outro
jeitos de dizer com o que não sai da boca
OCA
coisas que passam a fazer mais sentido
depois que a noite cai
mesmo assim você não está aqui
pra ver a minha lucidez brincar à luz de velas
cercada de sombras que perco pela manhã, e tudo isso porque você me pediu pra ser mais clara.
II
Adeus ao corpo no circo de horrores
De dia eu salto no trapézio
me seguro entre uma dor e outra
acrobacias em volta do buraco
de dia eu me sustento
mesmo que a corda seja bamba
ah, mas quando a noite cai
eu caio junto
vejo ali meus pedaços
tão meus, tão seus
tão contidos, tão bem agrupados
pra não assustar pessoas como você
meus pedaços outrora tão meus
agora dispersos, despedaçados e desiguais
meu corpo pedaço pedinte
pedante diante da verdade
se despedaça e nem se despede
já vai longe
e eu?
eu fico
III
Você me vem com réguas e regras
você tenta me explicar
me convencer que
‘’é a lógica!’’
mas não sou obrigada a beber da sua água
só por que tenho sede
nesse planeta há tantas fontes
quanto mais contrastantes, saborosas
quem foi que te deu essa régua
e te ensinou a ver o mundo
a sua medida e semelhança?
os números estão aí
cada vez mais usados pra dissimular verdades
muita coisa anda se perdendo na busca pela objetividade
o que eu tenho pra contar
é inquantificável
pois as palavras
e todas as ambiguidades que veem com elas
são a minha única fonte de precisão
IV
Umbigo d’olho
você acha que me vê só porque me olha?
não sou você, não sou espelho
e porque tanta reflexão?
meu corpo localizado no mundo
meu corpo perdido e mudo
meu corpo dobrado pra caber
pra não incomodar
pra satisfazer e agradar
meu corpo pro teu olhar se comprazer
mas quem deixou me olhar assim?
meu corpo localizado no mundo
não é suficiente pra dizer onde estou e nem quem sou
quando barreiras e lugares forem feitos de palavras sufocantes
grite
V
Falar de boca cheia é feio
e a boca cheia de areia
deserto
decerto vazio
decerto se engana
se engasga e se estranha
falar de boca cheia é feio
e a boca cheia de vazio
não falava nada
não comia nada
falar de boca cheia é feio
e a boca oca ficava cada vez mais oca
ecos possuem pouco valor nutricional
falar de boca cheia é feio
mas mais feio ainda é a fome
muda, calada e assim sem nome
falar de boca cheia é feio
e a boca cheia de palavras
engolia engolia engolia
mas a barriga não enchia nunca
e assim, sempre vazia, podia dizer tudo
VI
Na minha barriga mora um monstro
que ora quer devorar o mundo
ora quer comer o nada
na minha barriga mora um monstro que não se mostra
na minha barriga mora um monstro a me mostrar coisas que eu nem quero ver
dizem que é o cérebro o centro de tudo
mas é a barriga a alma do corpo
é a barriga o grande oco
casa de partida é a barriga
parida e partida, pra nunca mais voltar a ser inteira
é a barriga sorrateira
sem eira e nem beira
já me diziam que peixe morre pela boca
come, come, até não poder mais
e você, por quanto tempo ainda aguenta viver sem respirar
comendo o nada, estática e sem nadar?
Edimara Arcanjo é psicóloga, escritora e compositora. Autora do livro "Na minha barriga mora um monstro", publicado de forma independente, disponível na Amazon. Além disso, é atriz em formação pela Escola de Teatro 4portas na Mesa e integrante dos projetos Cantamina e Coral Vozes.