ESTOU MESMO EM TRANSIÇÃO OU É APENAS MAIS UMA VOLTA NA REPETIÇÃO EM QUE ESTOU PRESA?
EDIMARA ARCANJO - Agosto - v.1, n.2 (2022)
Transição definitivamente é uma palavra que me pega nesse momento, resisto em deixar as palavras saírem, pois tenho medo de dar de cara com alguma verdade perdida e perdida de propósito.
Porque eu?
Eu nem queria saber mesmo, mas enquanto me faço de desentendida, ela bate na porta e grita cada vez mais alto:
Ande logo, me deixe entrar, chega de besteira!
A verdade que mais me incomoda é não saber o que me aguarda no final dessa reflexão. Não sei onde quero chegar com tudo isso, mas continuo indo. A dúvida me corrói, em cada passo dado, em cada letra escrita. Estou mesmo em transição ou é apenas mais uma volta na repetição em que estou presa?
Transição, segundo o dicionário, é a passagem de um lugar, de um estado de coisas, de uma condição a outra. Veja bem que é exatamente aí onde está o problema, como delimitar o antes e o depois, se na minha cabeça, esses dois pontos vivem se confundindo? É possível captar o momento exato em que alguma coisa muda? Quando a mudança é gradual e se está sempre vigilante, é difícil notar a diferença, os olhos vão se adaptando, engolindo e digerindo o estranhamento.
Quando mudei, não dei por mim, como se quem tivesse vivido os últimos cinco anos da minha vida não fosse eu ou quem eu achava que era (?) Um exagero, é claro, pois não era meu o dedo a apontar e escolher entre os caminhos? Faz tempo que olho na mesma direção e por isso estou perdida. Não sei mais escrever textos como antes, quando me era possível atar num laço a ponta do começo com a do fim. Mas ainda estamos longe do fim, acomode-se, fique mais um pouco, quero lhe contar sobre a confusão que aconteceu no teatro naquele dia.
Era, pois, chegado o momento de uma grande revelação… ou talvez fosse apenas um detalhe, uma informação faltando. Eu esperava por qualquer coisa que finalmente fizesse aquela peça ter algum sentido. Mas no palco, permanecia apenas a mulher, a observar meticulosamente a roupa com a qual estava vestida.
Era um vestido vermelho, da cor de sangue envelhecido, tinha linhas retas e a cintura bem marcada, muito colado, como se assim pudesse impedir que o corpo se derramasse para além dos limites da costura. Ela olhava confusa, surpresa, como se o visse pela primeira vez e não soubesse como e porque fora parar vestida assim, em cima de um palco.
Para disfarçar o embaraço, passava as mãos pelos cabelos bagunçados e pelo vestido amassado, que sem sucesso, tentava desamassar, a fim de parecer mais apresentável aos olhos do público.
Estão olhando o que? Perguntava ela aos espectadores como se não houvesse nada ali para ser visto, como se não estivesse em cena.
Repetia a pergunta, enquanto olhava desconfiada do vestido para plateia, e da plateia para o palco. Cansada de repetir a mesma pergunta e não obter resposta, ela passava então a esticar o vestido com mais força, tentando tirá-lo, puxando para longe o tecido e esgarçando as costuras até o limite de si.
- É isso que vocês querem ver não é? Ela indagava ao perceber os olhares curiosos do público esperando ver aquilo que se espera da nudez, enquanto tentava se livrar do vestido que recusava-se a sair.
Finalmente conseguiu rasgá-lo, mas para desapontamento geral, percebeu que debaixo da roupa existia sempre outra, igualzinha a que fora tirada e por debaixo dessa, ainda mais outra e mais outra, assim por diante... O mesmo vestido, de novo e de novo, todo desbotado e puído, coberto por manchas e remendos de um tempo que há muito já havia passado e ainda assim persistia em se fazer presente.
Há quanto tempo aquilo estava na família? De quem tinha herdado? Da mãe, da tia? Achava que as coisas velhas e antigas possuíam um valor especial, um dito que já foi dito muitas vezes se encaixa muito bem em ouvidos viciados em ouvir o mesmo. Sou eu mesma ou ou sou eu de novo? Ela se perguntava, ao passo que tentava lembrar-se de quando ou de quem à vestira assim, sobretudo, como livrar-se dele e o mais importante: existia uma mulher viva ali dentro? Ou apenas a roupa de uma outra, velha desconhecida? E quem era ela então?
Parecendo despertar de um longo devaneio ou entrar em outro, quem poderia dizer? Ela desceu do palco, rápida, certeira em direção às portas do teatro, que nessa altura estavam fechadas visto que faltava ainda bastante tempo para o fim do espetáculo. Logo se viu ela voltando em disparada, fazendo o caminho inverso, subindo no palco, entrando na coxia e desaparecendo. Dizem que foi vista saindo pelas portas de fundo do teatro, ainda vestindo o vestido vermelho.
Por um tempo pairou no ar a dúvida se saída assim tão peremptória fazia ou não parte da peça. Bem, se não fazia, naquele dia fez. Boatos de que foi vista desorientada vagando pela cidade, outros contam ainda de um suposto diagnóstico, algo para tornar a falta de explicação mais palatável. A verdade é que perdeu-se sobretudo em histórias velhas, palavras antigas, muito bem circunscritas num papel de palavras, forjadas por outrem, queimando sua pele como ferro em brasa.
Para ser sincera, não sei o que aconteceu com ela, mas gosto de especular que descobriu que não é preciso procurar demais motivos dentro do umbigo e foi ganhar um pouco de si, da vida, dos outros e do mundo, todos esses que dela exigiram tanto, tiraram tanto.
Penso que transição seja isso, o movimento entre o equilíbrio e o desequilíbrio, a descontinuidade entre os retalhos da vida e a vontade, a necessidade de ligar um ponto com o outro para continuar tecendo, tendo em mente que uma palavra nova só pode ser criada, porque outra lhe antecedeu.
Sendo assim, respondo que sim, estou em transição, ao passo que também sou presa de repetições das quais vez por outra consigo escapar, na busca por um novo equilíbrio, que espero que notem, ‘’não é necessariamente mais avançado nem mais estável que o anterior, serve apenas para dizer: agora estou aqui e me sinto assim.’’
Edimara Arcanjo é psicóloga, escritora e compositora. Autora do livro "Na minha barriga mora um monstro", publicado de forma independente, disponível na Amazon. Além disso, é atriz em formação pela Escola de Teatro 4portas na Mesa e integrante dos projetos Cantamina e Coral Vozes.