Naquele domingo abafado, o sol já estava a meio caminho de seu percurso usual e os olhos de ambos mal tinham se cruzado. Um feito e tanto considerando as dimensões modestas do apartamento que eles compartilhavam há quase 2 anos.
Por certo, aquele não foi um bom fim de semana, assim como não foi uma boa semana de um bom mês ou um bom mês de quem sabe quanto tempo. Sem que percebessem, se foram os momentos espontâneos, o interesse, então houveram menos toques, menos desejos, menos palavras de afeto e, finalmente, menos palavras como um todo.
É difícil precisar onde e quando as coisas começaram a mudar: um mal-entendido sobre familiares? uma discussão cotidiana que reabriu velhas feridas? uma fantasia confessada e mal recebida? uma insegurança do devir?
O que quer que fosse a desavença primordial, esta parecia, naquele momento, soterrada sob camadas de angústia e ressentimento tão palpáveis quanto as paredes, os móveis e o ar pesado que compunham o espaço que comungavam.
-
Meio-dia.
O sol ardia. O domingo emanava sua letargia. O apartamento os confinava. E ambos, com olhares opostos e sentimentos díspares, se petrificavam.
Até que, num acaso, a palavra se fez:
- Quer ouvir um sonho que eu tive?
- Como assim?
- Eu tive um sonho ontem e lembrei agora. Quer saber como foi?
- Se não for muito longo.
- Ele começou meio tenebroso. Estávamos eu e você num prédio enorme perto de um parque, a noite. Ficamos ali, abrindo e fechando portas, numa penumbra. Tudo era meio familiar e ao mesmo tempo diferente. Até que a gente saiu desse prédio, caminhamos por um percurso meio escuro que já não era tão assustador. Era como se andássemos de dia por ele, mas era noite. Entende?
- Acho que sim.
- Andamos por esse caminho até que chegamos a uma lagoa.
- Uma lagoa?
- É. Uma lagoa não muito grande, meio plana, cercada de árvores. E dentro dela tinha um monte de crocodilos. Coisa de uns 10 ou 15, enormes, perto de um deque de madeira. Ai passou essa moça, por esse caminho, ela te cumprimentou, falou que ia te ver ou nos ver mais tarde, algo assim, e entrou na lagoa, pelo deque. Eu pensei que ela ia ser imediatamente atacada pelos crocodilos, mas não. Ela desceu calmamente as escadas e começou a nadar no meio deles. Foi então que eu percebei que ela estava apenas com um vestido branco, transparente, que se iluminava levemente naquela água. E os crocodilos, ao invés de atacá-la, nadavam como encantados em sua volta, numa espécie de dança com uma profusão mansa que lentamente os transformava em homens. Caldas viravam pernas. Carapaças verdes viravam pele. Bocarras viraram rostos humanos, lívidos, a nadar, ali, envolta dela.
Terminada a transformação, a mulher de vestido branco saiu calmamente pelo deque. Vimos seu corpo nu por sobre o vestido molhado, imaculado, que caminhou em nossa direção e se despediu com um sorriso terno antes de se encaminhar em direção a floresta.
- E depois? — perguntou — O que acontece depois?
Seus olhos se cruzaram.
- Me conta você — respondeu.
Diego Perez é doutorando em Letras Neolatinas pela UFRJ, autor da newsletter [MAGAZINE], dos zines "Viçosa" (2020) e "IDEIAFIXA" (2021) e colaborador na revista Terceyro Mundo.