angústias a gosto
ou aftertaste
o prato do dia
é o mesmo de ontem
tudo que faço
está temperado de angústia
angústia das horas amarradas
por tão apertadas cordas
angústia das horas livres
que não conseguem ser livres
angústia para o café da manhã
almoço e jantar
depois
a indigestão
o peso do mesmo
e a azia do nada
seres humanos
não são animais ruminantes
mas será mesmo?
quantas vezes a falta de escolha
foi empurrada goela abaixo
e o remorso foi regurgitado?
o arrependimento
pelos anos gastos
a vida perdida
na boca
o gosto reminiscente
o gosto, se ainda me lembro bem
era doce
era escolhido a dedo
pois você
guardava o melhor para mim
e eu devorava
sem me dar conta
de que um dia
com a boca seca e muda
ansiaria por mais
e morreria
de sede e de vontade
saudosa
de um gosto
pela vida despreocupada
que não encontraria
nunca mais
No deserto
A boca cheia de areia, os ouvidos cheios de areia, os olhos, cheios de areia também. O sol rachando sobre a minha cabeça, não há água, não há sombra. Apenas o calor fulminante me fazendo alucinar.
A minha cabeça foi decapitada e eu a vi quicar, uma, duas, três vezes antes de começar a rolar e deixar um rastro de sangue e miolos na areia. Engraçado, porque ontem mesmo eu vi minha cabeça se desprender do pescoço como um balão que se solta da linha e flutua, flutua, flutua… a uma certa altitude o balão-cabeça não aguenta mais a pressão e explode, chuva de massa cinzenta. O caso foi que depois me apareceu um animal faminto e não identificado e ele queria me comer. Pra me salvar, arranquei minha cabeça e ofereci a ele. Ele cheirou e achou terrível o cheiro, mas comeu. Depois vomitou tudo e desapareceu e eu fiquei ali, com a cabeça vomitada. Não sei se no deserto tem urubu, mas pensei que a natureza iria se encarregar daquilo por meio de algum animal detritívoro. E se for eu um animal detritívoro?
Andei um pouco mais, agora tremendo de frio pois caíra a noite fria dos desertos. Apenas me deitei em qualquer ponto da areia, que a essa altura tinha virado minha vasta cama. Pensei ter visto naquela noite uma estrela mais brilhante que o normal. Uma nave que me abduzisse daqui. Mas ela nunca chegou e amanhã é apenas outro dia. Mais um dia ultrajante de calor. A única possibilidade de sombra parece ser a semente que eu rego aqui dentro. Uma semente regada a suor. Uma semente que vai levar anos para dar sombra. Uma semente que nem tenho como afirmar se sobreviverá a mais um dia de sol na cabeça.
Eu osso
Eu sou o fundo do poço
Eu sou o fim da picada
Eu sou a última bolacha toda quebrada
Eu sou o pão mofado
Eu sou o chão que você pisa
Eu sou a poeira acumulada
Eu sou a merda que entope a privada
Eu sou o que resta depois que não resta mais nada
Eu sou o show fracassado
Eu sou o lixo que virou chorume
Eu sou o corpo seco que a terra rejeitou
Eu sou uma piada sem graça
Eu sou a primeira na fila dos covardes
Eu sou a tristeza que te invade
Eu sou a comida estragada
Eu sou a flor murcha e despetalada
Eu sou a certeza de que você mal me quer
Eu sou um espelho estilhaçado
Eu sou um espartilho apertado
Eu sou a versão falsificada
Eu sou a pilha estourada
Eu sou a impressão falhada
Eu sou a pura e simples
Degradação
Eu sou o que não tem jeito
Eu sou um brinquedo torto
Eu sou o que te incomoda
Eu sou o boi na hora do abate
Eu sou a morte mais sem sorte
Eu sou a louca que grita
Eu sou a que mandaram prender
Eu sou a que não se rende
Eu sou a boca seca implorando por um copo d’água
Eu sou a ação encerrada em defeito
Eu sou o que deveria ter feito e não fiz
Eu sou a ideia que nunca saiu do papel
Sem saber sem saber sem saber
Eu sou eu sou eu sou
Eu sou o grande inventor que inventou toda essa dor
Sem saber sem saber sem saber sem saber
Eu sou eu sou eu sou
Eu sou uma frase para sempre interrompida
Eu sou a palavra engolida
Eu sou o silêncio mais profundo e mais dentro
Eu sou a história apagada
Eu sou o eco que só existe por causa do oco
Eu sou a luz que não penetra na caverna
Eu sou você
Eu sou ninguém
Eu (não) sou quem você queria que eu fosse
Eu sou um fosso sem fundo
Eu sou uma tosse sem cura
Eu só sou o que posso ser
sabendo que todo o ser é uma grande furada
e que peneiras não foram feitas para taparem o sol
Eu sou um buraco profundo e acabou-se o mundo
Porque eu sou o mundo
Eu sou tudo que existe
Eu sou o que resta depois que não resta mais nada
Eu sou o fim
Eu sou o fim
e mais nada
Edimara Arcanjo é psicóloga, escritora e compositora. Autora do livro "Na minha barriga mora um monstro", publicado de forma independente, disponível na Amazon. Além disso, é atriz em formação pela Escola de Teatro 4portas na Mesa e integrante dos projetos Cantamina e Coral Vozes.