De dentro de casa, já às 17:30 de um domingo amargo e escaldante, foi possível ouvir o ronco impaciente e seco do motor se aproximando. O som era mais familiar do que eu gostaria e me causava efeitos catastróficos com sua chegada. Meu coração começou a trotar feito cavalo bêbado que não se contentava caber num estábulo e buscava alforria dando coices para todos os lados. Sair correndo para abrir o portão havia se tornado uma ação mecânica alimentada pela faísca desordenada do medo, pois aprendi na prática que se eu não chegasse antes de ele terminar de dar a ré, o improvável inesperado estava prestes a acontecer.
Neste percurso, ofegante e agonizando, os pensamentos entravam em combustão repassando o passo-a-passo na minha cabeça do que era necessário fazer. Abraoportãorápidoefecherápidoelenãogostadevisitanãopossofalhartenhoquechegarantesdeeledarrénãoabreobiconãoficanocaminhonãoficapertonãofalenadadeerradonãouseobanheiroelepodeprecisarprotejasuamãeváparaoseuquarto.
Toda vez que abria o portão, suspirava para tomar coragem como quem sabe que está prestes a morrer, mas não há alternativa se não ir em frente, fazer o que tem de ser feito. Conforme a luz ia tomando conta da garagem, avistava o terreno baldio e me preenchia da vontade de ser um rato, como aqueles que ele tentou matar e que, velozes, destemidos e donos de si, fugiram por debaixo do portão rumo a liberdade do mato alto, carniça e lixos esquecidos. Eu vislumbrava a vida do outro lado da rua. Mas assim que ele entrava, eu fechava e permanecia. Tão perto, mas tão longe... Me faltava ser mais rato.
Neste dia, eu que estava ali preparada e concentrada como uma corredora em competição esperando ser dada a largada, a postos para fechar o portão assim que o último milímetro do automóvel adentrasse, ouvi um barulho atípico que soou mais alto que a voz na minha cabeça que continuava a repetir as obrigações. Minha carne se expandiu empurrando pele e pelos, as batidas, já anteriormente aceleradas, tornaram-se quase convulsivas e senti gotas de suor escorrerem por entre os meus seios e surgirem no meu buço. Eu entendi o que era, mas busquei com todas as forças negar minha consciência. Um som agudo, agonizante a ponto de fazer o rosto todo contrair e os dedos serem pressionados contra a palma da mão enquanto a respiração cessa. Continuamente estrondoso foi rugindo enquanto a lateral do carro ia sendo dilacerada pelo suporte de enrolar a mangueira. A boca secou e meu corpo entrou em estado de alerta de maneira imediata.
Ao passar o cadeado, segui meu rumo para dentro de casa a passos largos, porém contidos, olhando tanto para o chão a ponto de conseguir enxergar todas as impurezas e intermitências daquele piso velho manchado de óleo de motor. Afinal, tudo ali naquela casa era sobre ele. Foi assim que eu aprendi a não existir, quando tive que conviver com alguém que coagisse minha existência e seus desdobramentos sonoros, causais e de movimento.
Quando algo o desgostava, as portas eram espancadas, eletrodomésticos arremessados, itens que ele sabia ser afetivamente importantes eram violentados até alcançarem as lágrimas e o desuso. Ninguém sabia o motivo do desgosto. Ninguém ousava perguntar. Podia ser qualquer coisa e nada ao mesmo tempo. A incerteza é o início do caos.
Me enrijeci para que não notasse minha presença, para que meus barulhos não fossem motivo de espingardas sendo carregadas e apontadas para os meus olhos como binóculos o fazem, para que eu não sentisse medo de apanhar e de morrer. Para evitar o inesperado, era preciso estar alerta. Podia ser qualquer coisa, um canal de TV, um semáforo fechado, uma comida preparada que o desgostava, o som da minha respiração. Me enrijeci por nunca saber o que despertaria sua fúria.
Mas, neste dia, eu soube. O bem mais precioso de sua vida havia sido devastado por várias doses de cachaça vagabunda, um latão de cerveja na mão esquerda e um suporte de ferro enferrujado para uma mangueira ressecada por falta de uso.
Cheguei no meu quarto e aquele silêncio delicadamente permeado pelo canto do canarinho poderia ser considerado contemplativo, proporcionando a mais perfeita paz, não fosse o ocorrido de minutos atrás. Por fim, ouço-o reagir, ao limpar a garganta num pigarro grosso de pinga barata e tentar sair do carro com respiração ofegante e o som do latão sendo esmagado contra os metais da porta. Não o vi, mas pude imaginar cada movimento de seu corpo podre de bêbado. Era possível sentir a putrefação de seu fígado através daquele hálito espesso cheirando a carniça, toda vez que ele me forçava a abraçá-lo.
Ouvi uma tentativa de troca de passos rastejantes, a borracha do solado de seu sapato sofria ao ser arrastada no cimento batido e lutava contra as irregularidades do caminho percorrido. O canarinho continuava a cantar, agora com mais empenho. Ele parecia ter a intenção de amenizar os acontecimentos através de seu canto, a natureza sabe das coisas.
Ele, finalmente, chegou à cozinha e gritou meu nome. Sua voz grossa e alta se fazia num berro sem barreiras, que faziam as janelas tremerem e a confiança ruir. Minhas pernas pareciam ter se esquecido de como andar e minha saliva deixou de ser produzida naquele momento. O percurso até ele foi como um calvário, eu sabia que estava indo para algum tipo de fim.
Bufando e aguando o ambiente com a baba que escorria de sua boca, ele perguntava em tom ensurdecedor e variadas vezes porque eu não avisei a ele que ia bater e que era tudo culpa minha, eu era uma inútil, não servia para nada. Eu arregalei o olho e
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Fiquei atordoada, paralisada e confusa. Pela primeira vez tive que ter voz, o que ia contra todas as ações que mecanizei para continuar ali a vida toda. Eu não tinha previsto este improvável, comecei a gaguejar e logo ouvi uma ordem para calar a boca. Quando dei por mim, o movimento de seu corpo estava se preparando para me arremessar o latão que estava em sua mão, foi possível até mesmo perceber que ele estava cheio pelas veias que saltaram de seu punho e pela rigidez de seus dedos. Apesar de enxergar a cena em câmera lenta, tudo aconteceu muito rápido e logo o objeto estava diante do meu rosto.
Sem saber como, por vias da adrenalina, emborquei minha coluna para trás alcançando quase um ângulo de noventa graus e a vi passar por meu nariz e estourar na parede revestida de cerâmica. Por entre a cerveja espumosa que ainda escorria, era possível enxergar o piso que rachara.
Ao perceber que o canarinho ainda cantava um canto sofrido de medo, talvez também sonhando ser rato, ele, de maneira violenta e sem pudor arrancou a gaiola da parede e também a arremessou para longe. Minha localização privilegiada na cena propiciou uma visão panorâmica de tudo e logo vi o pobre canarinho endurecer assim que foi chacoalhado pela primeira vez. O bicho afrouxou suas unhas que o prendiam ao poleiro e foi caindo rumo ao fundo da gaiola batendo nos obstáculos do que era seu limitado lar. Sem escrúpulos, meu pai virou as costas e foi dormir.
Minha mãe saiu do quarto, me abraçou e nós colocamos a gaiola de volta com o passarinho morto lá dentro. No outro dia, ao acordar e perceber a ausência de vida e a rachadura no piso, perguntou o que havia acontecido.
Foi a terceira morte que presenciei. A primeira, de minha mãe. A segunda, a minha. Eu era só uma criança de 06 anos.
Alanna Fernandes é escritora, poeta e fotógrafa. Autora de Incômodo Cotidiano (2018) e Texturas da Vida (2019). Agora se coloca a olhar para seu terceiro livro. Espelho nasce do desejo de que a palavra não perca seu significado diante do imediatismo.
A Editora Tamuatá é a responsável por trazê-lo ao mundo.