Tem dias que é melhor nem nascer
no crepuscular da noite
percebo minha infinita solidão
em cada detalhe e desastre pessoal
que me dou na prece de uma liberdade que não é minha
cuspo nas vocações mecanizadas dos seres
o escuro é oxigênio pulsante na retina
é boêmio é convite que aceito e apareço
sou estranho quando amanhece
porquê o dia faz doer meus olhos
o café aflora minha ansiedade
e os comprimidos desceram com doses de bacardi na última noite
encho a xícara até a borda
é quente fumaça transborda
suja o azulejo desbotado do piso do quarto
passo o pé numa falha e preguiçosa tentativa de limpá-lo
minha cabeça dói
ignoro os livros na estante
ignoro os instantes
que me consomem a miúda
depois do café da ansiedade antropofágica do pão nosso de cada agonia da playlist de Mac Miller
finalizo minha manhã
meu melhor amigo me odeia e me acha tóxico
diz que sou um cara complicado um caso perdido
ele não me entende mas se esforça para entender
será que ele sabe que me mantém vivo?
olho meu celular: zero mensagem
penso "morrerei sem um bom dia"
no suspiro de uma lesma
minutos viram horas
quinze e quarenta e sete:
não almocei
sou negligente com minha saúde
volto para a cama
me deito numa tentativa de dormir e encurtar o dia
fracasso
dia sem maconha é horrível
olho novamente às horas: dezoito e vinte e seis
o sol mais uma vez foi embora
o escuro volta e vira convite
que aceito o repetitivo erro
de matar a solidão: viver
tem dias que é melhor nem nascer.
Um convite para Dionísio
são quase duas e meia da manhã
estou fumando para vê se ameniza minha ansiedade
mesmo sabendo que fumar representa o contrário
fumo porque a vida pede
e porque a sobriedade é coisa de louco
nasci uma pessoa normal
que odeia o sol
joga pedra na lua
tem medo de multidões
e escada rolante
queria ter nascido em tempos antigos
ter dançado pra chuva
num festejo de homens nus
reunidos recitando mitos e epopeias
em volta de uma fogueira
nasci numa sexta-feira
na coincidência do mesmo dia da semana
que eu morro sempre
com um único golpe
não sofro parcelado
morro de uma vez só
no fundo de um copo
ou na geografia de uma virilha
carícia volúpia
que me afoga em suor, saliva & gozo
como um oceano de prazeres
um rio que escorre dentro de mim
e mata minha sede na fonte
um encontro com Dionísio
uma orgia regada a vinho
e outras substâncias
a névoa que sai da tua boca
ofusca um novo dilúvio
talvez o fim do mundo seja isso
o orgasmo de dois corpos que se desejam
talvez o fim do mundo não seja essa coisa ruim que todo mundo fala.
Rimbaud
do Rimbaud
eu quero tudo
o gozo, o sexo, o haxixe, o álcool, a incerteza
o gosto, a vontade, o desejo, o abandono, a liberdade
do Rimbaud
eu quero as asas, o vôo, a queda
o bem e o mal, a esperança do recomeço
os erros e acertos
quero fugir para Paris
e nunca mais escrever versos
me embriagar com outros corpos
desenhar com as unhas outras linhas na carne
de uma paixão passageira
do Rimbaud
eu quero o amor tempestuoso
que me coloca em espera
e me toma as carícias
do Rimbaud
eu quero o céu, o inferno, o pecado, a salvação
a imortalidade dos versos, a contradição do espelho
a memória dos gemidos e das noites
quero a existência no cálice de ouro
o atentado contra a moral inventada
a ruminação dos costumes
o desatino ato de ser eu a minha própria invenção
a geografia dos olhos e do desconhecido.
No meio das pedras tinha um caminho
teu corpo tem curvas e tentações para o meu encantamento profano
sagrado é teu líquido que escorre em mim
misturado com suor e desejo
eu gosto de te vê assim como veio ao mundo
sem amarras nem inquietudes banais
meu rosto nulo atravessa os gestos de renúncia da tua vontade
e tatua tua carne com meus caninos famintos
sigo o curso certo do rio que escorre dentro de mim
vindouro das nascentes do teu íntimo ínfimo
o rio teu conjura meus pecados e me condena
me perpétuo em ti e nas coisas do mundo
cuspo estrelas no teto amorfo do meu quarto
dou nome a novas constelações que eu mesmo crio
ouço a melodia do teu gemido mudo
e dou gargalhadas de Beethoven
lúdico, louco, passageiro e pássaro
poeta da perdição, das mãos trêmulas
ditando lamúrias para ouvidos encerados de verdades prontas
seres mastigadores de razões e entupidos de ópio
tua juventude revoltosa me busca em madrugadas de desamores
minha prece se confunde ao desejo
sinto a caótica fuga de mim e adoeço meses
são noites que ensaio o fim de Godard em tons de cinza
exaustivo é o existir que veio sem mapa nem bússola
tua boca ríspida me devora e tua presença espanta minha sobriedade
aceita meus medos, meus traumas, minhas fugas
meus excessos comporta grandes vazios na prateleira do incômodo
vivo esse amor com prazo de validade que apenas tem sede de vontade de matar o vazio da solidão no sexo que não é íntimo
reescrevi Drummond:
no meio das pedras tinha um caminho
e no meio das tuas pernas tinha uma fuga...
para o abismo
Janderson T. Sousa é escritor, artista e rapper. Nativo de Itapipoca/CE, o artista é uma figura em ascensão na cultura Hip-Hop/Poesia. Ele escreveu seu primeiro livro em 2015, uma coletânea de crônicas intitulado "Crônicas e Eu", quando estava ainda na escola. Em 2017, se aventurou no mundo do romance escrevendo "Cecília", um livro nunca publicado oficialmente. Em 2021, participou do livro "Minha política é a dança que gero no mundo". Em março de 2022, lançou o primeiro volume da coletânea poética "Cacos & Casos", e, no mês de setembro, deste mesmo ano, está lançando o segundo volume da coletânea, que acontecerá em uma série de três volumes.