- Tanta gente buzinando e esqueceu de andar!
- É que o sinal parece sempre estar fechado para quem quer mudar o mundo.
- Assim não vamos chegar em lugar nenhum…
- Mas já chegamos.
Você consegue perceber onde está agora?
Foi assim que eu cheguei aqui, sem documento, sem visto, ou mapa astral, chegava ao mundo mais uma pessoa normal. Pobre de mim, sentindo o gosto ruim da vida real. Tive que aprender a temperar tudo, por mais que às vezes me faltasse até o sal. Há sempre um lado que pesa e o outro que flutua e eles coexistem juntos. A minha pele é crua, porém calejada, e já aprendeu que só é possível se separar de algo quando se aceita que o que está fora também já esteve do lado de dentro.
Como você sente o tempo?
Penso que o momento pelo qual todos nós estivemos esperando é agora, sempre foi agora! E isso é urgente, eu tenho fome e estou ficando impaciente. A minha fome é persistente, come tudo o que vê pela frente, come a língua, come o dente, qualquer coisa que alimente. É uma fome que não será saciada com migalhas.
Você mata ou alimenta o desejo?
Sinto-me devorada pela minha própria fome e pela fome dos outros também. Aprendi que não se deve usar migalhas de pão para marcar o caminho de volta e nem aceitá-las como alimento. Entendi que não há volta, mesmo que às vezes possa parecer que estamos andando para trás, estamos sempre construindo o futuro. Infelizmente olho o futuro e vejo o quanto ele ainda se parece com o passado, não aprendemos nada com o passado. Não sabemos nossa história, não ouvimos com atenção. Não nos contamos. Escrever é insistir que vale a pena contar. Ancorar palavras para ganhar impulsos, alçar voos mais altos e longos. Para voar é preciso se livrar do peso das verdades cruéis que não queremos ver.
O que você faz com a verdade?
A verdade é que eu me domestiquei, para fazer parte do jogo, mas não se engane, continuo bicho solto. Eu quero ser devorada, mas eu também quero sentir o gosto, eu quero saborear o prato sem saber de críticas prévias, eu quero comer o pedaço que eu quiser, eu quero que pare de doer onde estava o pedaço que você arrancou.
Você sabe para onde está indo, ou para onde quer ir?
Você me pergunta do futuro e eu perdida tentando resolver o ontem não consigo enxergar o hoje. O medo mora perto das ideias loucas e eu sinto que o mundo anda me dizendo: voa! e eu aqui, contando penas. Pecado mesmo é ter asas e não voar.
Nesse mês de outubro, re alimentamos o desejo, revisitamos as dores do passado para digeri-las e então vislumbramos um futuro de esperança. No fim das contas, não era uma migalha perdida, era um grão em busca de terra fértil, pronto para ser regado e germinar.
Ser terra
e cantar livremente
o que é finitude
e o que perdura
unir numa só fonte
o que souber ser vale
sendo altura
Hilda Hilst
Fim da Transmissão!