A PARTIR DE AMANHÃ NO PRIMEIRO EU TE AMO EU ME ENTREGO
YURI MARROCOS - Outubro - v.1, n.4 (2022)
detalhes
a boca bêbada
minha postura invertebrada na frente do espelho anunciando o desgaste
eu te caçando com minhas duas mãos devoradas
corro ao banheiro
porque tanta cerveja
me dá vontade de mijar
eu jamais seria capaz de me acomodar
com as eternas idas
em busca daquela coisa
que o amor nos dá e nos tira
dou descarga
ergo as calças e caem gotas de mijo
no meu pijama
eu não me importo porque
sou como um assalto a uma velha locomotiva
não – minto –
eu sou a velha locomotiva
sendo assaltada
sem que eu perceba a ausência
dos meus mínimos detalhes
cigano
quando eu era criança
um homem leu minha mão
disse que eu teria um futuro brilhante
& quando ninguém estava olhando
botou meu polegar na sua boca
um outro homem me disse
que olhou Deus nos olhos
e o definiu como uma festa
que só existe
quando você não é convidado
engraçado
eu nunca acreditei em futuros brilhantes
& festas me deixam deprimido
não quis dizer com isso
que sou contra Deus
apenas que ele
nunca fez questão
de sentar na minha mesa
& outro dia percebi também
que nem sequer tenho
um passado brilhante
ou uma história
suficientemente heroica
para contar
sou comum
tão comum
que me igualo aos homens
& aos bichos que devorarão
esses homens
sou tão comum
que meu nome foi
minha mãe quem me deu
e é o mesmo nome
que consta na minha ficha
sou tão comum
que minha vontade agora
era um homem para dizer
que me ama
e realmente queira
dizer isso
mas eu já me decidi
a partir de amanhã
não vou me importar
no primeiro eu te amo
eu me entrego.
clarisse
Onofre era o nome do meu marido, essa senhora me conta enquanto atravessa a rua da saudade com um olhar espadado e os lábios cansados. é apenas mais um dia, uma nova ressaca, um domingo melancólico como os últimos três e eu alugo meus ouvidos para essa senhora como uma espécie de redenção espiritual uma cirurgia de remoção de pecados
nossa culpa cristã não é a mesma mas ambas produzem versos violentos no meu caso e no dela produz esse estado paralítico. conhecendo essa senhora como conheço serei levado até sua casa uma placa gigante escrito aluga-se nenhum bicho nenhum jardim nenhuma foto de família apenas uma 38 na gaveta que por acaso era do seu marido Onofre
ele não morreu apenas a deixou sozinha com uma arma uma gaveta e uma passagem vencida de Guanabara para uma cidade que foi inundada foi alguns dias antes do meu aniversário, ela me conta uma capricorniana típica de olhos mofados um dente sim um dente não rugas sem esperança como crianças num orfanato
amanhã farei uma tatuagem com o nome da senhora será minha homenagem, uma bem grande e visível capaz de me tirar um emprego ou despertar comentários desagradáveis de crianças ainda mais desagradáveis. depois convidarei ela para dançar lascarei um beijo em sua boca e faremos amor entre moradores de rua e inferninhos
acenderei seu cigarro provarei a ela o quanto eu sou tarado e direi que tenho contra mim o fato de que só tenho uma boca, ela me mandará embora com o volume de um foguete deixando a terra e dizendo que o último a sair deve apagar a luz, mas àquela altura do campeonato só haverá eu e a senhora na cidade inteira.
SE EU ESTOU BEBENDO
é porque tenho boas razões
é porque vejo sentido
na vontade de beber.
então se eu estou bebendo,
não tire de perto as crianças
porque um dia serão elas
que terão idade
para afogar
a própria vida.
também não precisa
ligar para minha mãe
para que vocês se perguntem
qual a minha doença
e quanto tempo mais
vocês aguentam o fardo.
eu não acho que a solução
para o meu problema
seja parar de beber.
eu acho que
beber e não beber
são variações
da mesma palavra
assim como
abandono é uma palavra
e amor,
também uma palavra.
se são só palavras,
meu bem, um segredo:
além de bêbado,
sou poeta
deixe que com a bebida
eu me resolvo.
Yuri Marrocos (22) é dramaturgo, poeta e brasileiro. Estuda psicologia na Universidade Federal do Ceará. Tem dois livros publicados: Um Artista da Luz Vermelha, para teatro, e Sodoma e Gomorra Tropical, poesias assinadas pelo heterônimo Jerônimo Parada.
Também sou tão comum, tão igual, que o meu nome é o mesmo do meu avô; também acho excêntrico as soluções momentâneas que vêm da vontade de beber.